Luvuei situava-se em pleno coração da mata, completamente isolado do mundo. As localidades com algumas condições mais próximas eram a Vila de Gago Coutinho, a cerca de 100 quilómetros de distância, e a cidade do Luso a mais de 300 quilómetros. Talvez por isso, alguém tenha chamado àquela zona "Terras do Fim do Mundo".
Na altura, o acesso a Gago Coutinho e ao Luso fazia-se por picada, uma das mais minadas de Angola, ou por via aérea.
O nosso relacionamento com a população local, que vivia na sanzala, junto ao quartel, era bom e talvez isso explique a razão pela qual o nosso quartel só foi atacado uma vez, em 4 de Fevereiro de 1971, enquanto ali permanecemos. Embora fosse a UNITA que exercia mais influência no Leste de Angola, pensa-se que o ataque tenha sido perpetrado pelo MPLA, para comemorar mais um aniversário do início da luta armada em Luanda, uma vez que coincidiu com a data em que se iniciou a guerra em Angola, com o ataque à Casa da Reclusão.
O ataque ao Luvuei foi efectuado durante a noite, tendo o inimigo utilizado armas ligeiras e morteiros 80, equipamento superior ao que a CART 2731 dispunha, uma vez que só possuíamos armas ligeiras, metralhadoras e morteiros 60.
Felizmente para nós, o inimigo não devia ter grandes especialistas no manuseamento do morteiro, porque nenhuma das granadas atingiu o nosso aquartelamento, indo cair a algumas centenas metros para além do quartel.
Apesar disso, estávamos a correr um grande risco, porque os nossos morteiros não tinham capacidade para alcançar o local donde o inimigo estava a atacar e este, a qualquer momento, podia afinar a pontaria e começar a acertar na área do aquartelamento, o que nos criaria uma situação muito complicada.
Valeu na altura a coragem de um 1º. Sargento, homem muito experiente, já com algumas comissões no Ultramar, que, acompanhado por outro elemento da CART 2731, resolveu pegar num morteiro 60 e num cunhete de granadas, sair do quartel e avançar, mesmo debaixo de fogo cerrado, até à margem do rio Luvuei, a cerca de 200 metros de distância do quartel.
Desse local já o nosso morteiro tinha capacidade para atingir o local donde estava a ser efectuado o ataque. Bastaram meia dúzia de morteiradas e o ataque inimigo cessou quase de imediato.
Na manhã do dia seguinte, foi efectuada uma operação de reconhecimento à zona, tendo sido encontrada uma arma, junto a um guerrilheiro morto. Foram detectados vários rastos de sangue, o que prova que o inimigo sofreu, pelo menos, 1 morto e retirou com vários feridos. Em relação à CART 2731, para além do grande susto, o ataque não provocou quaisquer danos.
No Luvuei os nossos dias estavam sempre muito ocupados. Faziam-se operações com frequência, havia necessidade de, quase diariamente, ir à água e à lenha, faziam-se várias deslocações ao Lutembo, para reabastecer o nosso grupo de combate que ali estava instalado, nas noites que antecediam os dias de MVL, havia necessidade de fazer protecção à ponte que existia na picada entre Luvuei e Lutembo, para evitar que a mesma fosse destruída pelo inimigo, o que sucedeu várias vezes, mas sobrava sempre algum tempo para momentos de lazer.
Nas horas vagas, os nossos principais passatempos eram, essencialmente, o futebol, o jogo de cartas, designadamente king e lerpa, e a caça.
Em frente da porta de armas, no exterior do quartel, havia um campo de futebol improvisado, onde era habitual ver-se, às sete da manhã, pessoal a jogar futebol. Um dos grandes animadores desses jogos era o médico da nossa Companhia, o Dr. Jorge Humberto, figura bem conhecida dos meios desportivos. Jogou na Académica de Coimbra, donde se transferiu para o Inter de Milão. Terá sido uma das primeiras transferências de futebolistas portugueses para o estrangeiro.
Os jogos de cartas eram disputados normalmente depois do jantar até por volta da meia-noite. Ás vezes jogava-se à lerpa, mas, por regra, o jogo preferido era o King. Organizavam-se campeonatos e o vencedor era contemplado com uma garrafa de whisky.
Muitas vezes, nas noites que antecediam o MVL e que havia pessoal da CART 2731 a fazer protecção à ponte, o Comandante da Companhia, depois de acabar o jogo das cartas, por volta da meia noite, pegava no jipe e dizia-nos que ia fazer uma visita e levantar a moral dos homens que estavam no mato.
Bem o tentávamos dissuadir, alertando-o para a perigosidade da aventura, uma vez que, para além de poder cair numa emboscada, tinha de percorrer cerca de 20 quilómetros de picada, onde com frequência o inimigo colocava minas, especialmente nos dias que antecediam a passagem do MVL. Nunca o conseguimos dissuadir, nem nunca quis que o acompanhássemos. Fez isto várias vezes, deixava uma grade de cervejas para o pessoal e voltava trazendo, quase sempre, uma ou duas gazelas, que caçava pelo caminho.
A caça era um passatempo perigoso. Era praticada, normalmente, à noite. Tínhamos de utilizar holofotes, que denunciavam a nossa localização, pelo que todas as precauções eram poucas. As espécies mais capturadas eram os veados, as gazelas e as pacaças.
As pacaças eram uma espécie de boi selvagem e chegavam a pesar mais de 600 quilos. Sempre que se caçava um destes animais havia rancho melhorado durante aproximadamente uma semana. Era preciso ter muito cuidado com as pacaças, porque quando eram atingidas e ficavam feridas fingiam-se mortas e atacavam os caçadores que inadvertidamente delas se aproximassem. Assim, sempre que atingíamos uma pacaça, tínhamos o cuidado, antes de lhe tocar, de disparar alguns tiros para a cabeça, embora pensássemos que já estava morta.
O clima no Luvuei era bastante agreste. As temperaturas atingiam durante o dia valores próximos dos 40º C e à noite chegavam a atingir valores negativos. Esta localidade fica situada a largas centenas de quilómetros de distância do mar, pelo que a amplitude térmica nesta zona é muito elevada.
Depois de alguns meses de permanência neste inferno, a CART 2731 foi substituída, em Junho de 1971, pela Companhia de Caçadores 3369 e transferida para o Ambriz, um paraíso, se compararmos as duas localidades. A distância entre Luvuei e Ambriz é superior a 1.000 quilómetros.
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